Cada vez que ouço o ruído das cigarras eu me lembro dos verões de minha infância e inicio de adolescência, sim, eu me lembro. Lembro-me do fim das aulas, dos exames, lembro-me da porta que se abria para um mundo onde só o presente importava, o passado tinha ficado no colégio e o futuro era coisa de adultos.
Sim, eu me lembro, lembro-me do Rio Guaíba, que hoje chamam de lago, mas na teimosia de minhas lembranças sempre será o “Rio”, o rio do banho de rio, das “ilhas” que surgiam no verão, nada mais que leito descoberto por falta de água, mas para nós eram as ilhas, do futebol na água, das fantasias infantis, as ilhas que se mostravam em frente ao portão de baixo da chácara da Pedra Redonda, lugar mágico de minha infância.
A chácara do “murinho”, de onde se via as velas distantes dos barcos e que viu e ouviu todos os sons, lamentos e namoros, que foi testemunha muda dos segredos de várias gerações, que no alto de seus poucos metros acima da praia, permitia ver a “Pedra Redonda” que emprestava seu nome à praia e à chácara, separada por uma pequena faixa de areia das pedras de onde pescar lambaris consistiam em uma das grandes diversões de minha infância, pescá-los com miolo de pão amanhecido posto em anzóis de alfinetes curvados, faziam parte da mágica do verão.
Sim, eu me lembro, me lembro bem. Lembro-me do futebol na “cancha”, pequena e de chão de areia, entre casas de tios, que assumia ares de Maracanã nos grandes jogos de minhas lembranças, disputas com os inúmeros primos, com tios, e às vezes, a suprema honra de ser chamado a integrar algum time dos primos mais velhos, normalmente no gol, mas fazer o que, estávamos lá, era o que bastava (um abraço ao muito querido primo Paulinho).
É, eu me lembro, lembro-me das cadeiras de vime, dispostas no avarandado do grande chalé, de onde reinava suave minha avó, cercada de tias, biscoitos e sorrisos, sobre o chão de areia grossa da chácara. Sim, eu me lembro, eu lembro bem. Lembro de minha mãe me chamando pelo nome composto, isto depois de outros tantos chamados pelo primeiro nome, o que significava que tinha que ir, que sua paciência tinha acabado.
Lembro de que tinha que esperar uma hora antes de entrar do rio, após qualquer refeição, lembro da minha “planonda”, das várias camisetas do Grêmio que ganhávamos, dos jogos de futebol de botão, dos torneios intermináveis entre primos, das noites frescas e dos implacáveis mosquitos, tudo cheirava a verão e coçava verão, sim, eu me lembro, lembro bem.
Lembro-me dos cinamomos e suas frutas, nunca soube se eram frutas ou sementes, para nós eram só “projéteis” que supriam as nossas “fundas”, bodoques como chamam em quase todos os lugares, lembro-me da figueira de muitos anos, que me pareciam séculos, debruçada sobre o início da praia, emprestando sombra para quem lá estava, filtrando o sol exigente e desenhando riscos no chão de areia varrido pelo eterno “seu Lauro”, quase tão antigo quanto ela.
E quando o canto das cigarras vem arrombar as portas das minhas lembranças, tirando o mofo de tantos invernos sem luz, sinto o mesmo sol no rosto, o mesmo calor, a mesma vontade de tomar banho de rio, a vontade de voltar, sim eu me lembro.
Malditas cigarras, que lembram o que achei ter esquecido, benditas cigarras que fazem com que o tempo seja só uma referência, e que mantem vivas as lembranças sem tempo, sim eu me lembro, lembro até do que esqueci, lembro-me de ter esquecido, mas eu me lembro.
Sim, eu me lembro bem, eu lembro de tudo agora, pois talvez jamais tenha esquecido, pois é muito bom lembrar do verão quando se aproxima o outono da vida, já que esta, no fundo mesmo, dura tanto quanto o canto da cigarra.
PS: Desculpe e obrigado Gina, prima querida, mas roubei sua foto maravilhosa, rsrsrs
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